segunda-feira, 25 de julho de 2016

A NATUREZA DO TERROR



* Por DENIS LERRER ROSENFIELD  

O cruel atentado de Nice inseriu-se em uma série de atos violentos do mesmo tipo, não sendo único nem exclusivo. Nova York, Orlando, Paris, Nice, Bruxelas, Tel-Aviv, Jerusalém, Bangladesh e Bagdá são seriados de uma trama do terror que nos coloca diante de um novo fenômeno. Ele não mais se enquadra nos modos habituais de pensar a vida e a morte em sociedade.
Quando do atentado às Torres Gêmeas do World Trade Center, várias questões foram levantadas a propósito da eficiência de atuação dos órgãos de inteligência americanos. De fato, não tinham conseguido prever este ato.
A questão que se coloca, no entanto, é outra. Tinham eles as categorias de pensamento para prever que os terroristas, despreocupados com a sua própria vida, iriam arremessar dois aviões contra duas torres? Encontrava-se tal ato enquadrado em algum tipo de manual? Como podiam prever o que não tinham pensamento para ver?
Terroristas que desprezam a própria vida terminam por infringir uma condição que concerne à própria condição humana, se seguirmos Hobbes, segundo o qual os homens buscam antes de tudo conservar a própria vida e evitar a morte violenta. Ora, trata-se de um princípio a orientar o pensamento. Se o princípio já não é mais aceito, o pensamento que dele se segue perde o seu fundamento.
Terroristas são indivíduos que obedecem a uma determinada concepção, que se orienta segundo valores e princípios que rompem com toda uma tradição do pensamento ocidental, de orientação greco-romana e judaico-cristã.
Quero dizer com isto que a natureza dos seus atos não deve ser buscada em questões psicológicas, como o ressentimento, ou sociais, embora possam se fazer presentes. Aliás, os terroristas são geralmente de classe média, quando não de classe alta, jogando por terra qualquer explicação social deste tipo.
O terror possui uma natureza única, que diz, sobretudo, respeito ao modo de encarar a morte violenta e a relação com o outro. Funda-se, neste sentido, em outro valores e princípios, inicialmente de difícil compreensão para que os que pensam e vivem segundo outras formas de vida e morte.
Na ótica ocidental, por assim dizer, o terror é “irracional”, precisamente por estar em rompimento explícito com nossa forma de racionalidade. Talvez, mais do que isso, ele se caracterize por se situar além da própria razão. O desafio de pensá-lo é tanto maior quanto mais distante se situa em relação às próprias condições teóricas e práticas de exercício da razão.
O que o terrorismo islâmico tem colocado em pauta é um completo desprezo para com a vida, como se ela não tivesse valor nenhum, devendo ser absolutamente desconsiderada. Algo, de certa maneira, desprezível. O terrorista se mata para matar o maior número de pessoas, não importando que sejam crianças ou adultos, jovens ou velhos, homens ou mulheres. O seu alvo não é militar, mas a própria condição humana. O seu inimigo não é alguém fardado para a guerra ou a segurança, mas um simples civil, símbolo da Humanidade.
O instrumento utilizado deve simplesmente obedecer a esse objetivo maior. Não importa como seja feito. Pode ser um avião, como em Nova York; fuzis e metralhadores, como em Paris; bombas, como no Iraque; facas e machados, como em Israel e na Alemanha; caminhão, como em Nice. São meras ilustrações dos meios, conquanto o objetivo maior seja o que importa: a destruição do próximo, do outro, qualquer um. O essencial é que a morte seja violenta.
Note-se que todos esses atos obedecem a uma mesma concepção, que segue valores e princípios próprios. Não são atos aleatórios nem casuais. Obedecem a todo um plano que é executado das mais diferentes facetas. Seu único objetivo consiste em que a destruição encontre a mais ampla repercussão possível, capaz de mostrar que a morte violenta se aproxima para todos os que não seguirem a sua própria concepção. O medo generalizado, para eles, é o seu mote central.
Em certo sentido, pode-se dizer que seus atos são “lógicos”, embora sua lógica seja vista como a da “irracionalidade”. São metódicos na execução, não se afastando dos seus fins, apesar de suas formas de ação, por vezes, nos desconcertarem. Pegue-se o caso dos ditos “lobos solitários”.
A própria expressão “lobos solitários” já é completamente inadequada, por não serem “solitários”. Sentem-se acompanhados em seus atos, em íntima conexão com a concepção que os orienta. Foram, previamente, “educados” conforme os novos valores e princípios. Não importa neste “novo” mundo se a educação foi presencial ou virtual ou uma conjunção das duas. As redes sociais pertencem também a este “novo” mundo. Seguem uma concepção e um plano.
Não se deve compreender a “solidão” no sentido exclusivamente presencial. E, mesmo aqui, quando a investigação policial é bem feita, contatos presenciais são sempre encontrados, bem como os meios físicos dos ataques, dependendo das necessidades escolhidas. O lobo é conectado! O terror age em rede, tendo ganho uma dimensão global. Neste aspecto, configura uma novidade, a novidade de uma nova forma de maldade.
Logo, não convém buscar apenas “células terroristas” no sentido habitual do termo, porque mesmo este termo encontra aqui suas limitações. A nova forma de “congregação” pode simplesmente adotar novos modos, que prescindem da fórmula tradicional da “célula”, vigente no século XX. A atenção da inteligência exige uma nova forma de pensamento.
A recente prisão de potenciais terroristas pelas autoridades brasileiras obedeceu, neste sentido, a um novo padrão, primando pela inteligência e cautela, ciente de que o modo de atuação destes grupos não se enquadra nas formas habituais de ação.
Não se trata de dizer que sejam amadores, embora talvez o sejam. Talvez também o motorista de Nice possa ser dito “amador”. Se tivesse sido preso antes, a barbárie não teria acontecido. A imprudência teria sido deixar os atos se desenrolarem segundo a “lógica” do terror.

* DENIS LERRER ROSENFIELD Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Fonte: O Globo 

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