sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A Bíblia da caça ao tesouro





“Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é mister socorrer os necessitados e recordar as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20:35).


“E Jesus lhe respondeu, dizendo: Está escrito que nem só do pão viverá o homem, mas de toda a Palavra de Deus” (Lc 4:4).


Faz parte dos anais da tradição decorrente da Reforma religiosa na Europa o respeito pela autoridade e integridade das Escrituras. “Sola Scriptura” ficou como um dos poucos fundamentos indiscutíveis do movimento de restauração espiritual do Cristianismo, iniciado pelo alemão Martinho Lutero, no século XVI e depois consolidado por Calvino.


O evangelicalismo, que sucedeu historicamente ao movimento protestante ou reformado, manteve a tocha acesa deste princípio, porventura ainda com mais assertividade e compromisso do que nunca.


O pentecostalismo, que atravessou o século passado numa dinâmica de crescimento global explosivo, nunca deixou cair o cuidado pela integridade do texto bíblico, independentemente das suas interpretações. Mas o neopentecostalismo tem vindo a dar sinais de querer anular este velho princípio que norteou gerações sucessivas de cristãos em todo mundo, no último meio milénio. Como? Ao promover uma abordagem às Escrituras cada vez mais irreverente, isto é, embrulhando-a num pacote “comercial” que desvirtua a essência e a totalidade da Palavra Revelada.


Longe do abnegado espírito missionário das Sociedades Bíblicas em todo o mundo, alguns líderes neopentecostais estão a promover edições especiais do livro sagrado dos cristãos, de acordo com as suas doutrinas.
Bem sei que por enquanto são só comentários, anotações e auxiliares de leitura, mas já falta pouco para vermos o próprio texto bíblico “adaptado” às doutrinas neopentecostais, à boa maneira dos russelistas ou, quem sabe, que integrem novas revelações, como as famosas tabuinhas de ouro dos mórmons.


Assim têm surgido as bíblias disto e daquilo, para todos os gostos. Mas não me refiro a edições como a Bíblia da Mulher, Bíblia Teenager, Bíblia do Ministro, Bíblias de Estudo e outras do género, pois normalmente não são mais do que adequações da apresentação (formato, capa, tamanho de letra, destaques, mapas, tabelas, etc.) com vista a públicos definidos.


Refiro-me a uma outra coisa, que se reveste de contornos de gravidade, e que entra no campo da manipulação e do abuso da boa fé das pessoas, tendo em conta a sua ignorância. Um dos últimos exemplos disto é a Bíblia da “Batalha espiritual e vitória financeira”, recheada de comentários altamente controversos (para não dizer pior) de Morris Cerullo, cuja propaganda afirma “Creia na palavra do Profeta de Deus”. Assim mesmo. O importante já não é crer na Palavra de Deus, mas na palavra de um homem que se intitula “Profeta de Deus” (com P maiúsculo, sim!). A Palavra de Deus foi substituída pela palavra do homem!…


As pessoas são desafiadas, não a comprar uma Bíblia, mas desta forma pouco honesta, e mais própria de uma campanha publicitária de electrodomésticos: “Faça a sua oferta voluntária de 900 reais (cerca de 350 euros) e ganhe a bíblia de estudo tal”. Porquê 900 reais? Por um puro delírio numerológico (a justificação é estarmos em 2009!), que daria para rir se não fosse triste. É preciso descaramento… Afirma Pedro: “(…) nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana (…)” (1 Pd 1:20-21).


Só falta dizer que aquele exemplar da Bíblia é melhor do que um outro qualquer, adquirido numa livraria cristã, porque tem as anotações do pregador tal, e portanto será mais abençoada, mais poderosa, mais Palavra, em suma, funciona melhor.


São por demais evidentes os laivos de simonia nesta manobra (At 9:9-25). Actos dos Apóstolos conta-nos de Simão, o mágico, que ofereceu dinheiro aos apóstolos para também impor as mãos e as pessoas receberem o Espírito Santo, com a evidência das línguas estranhas.


Neste produto em particular, Cerullo chega a prometer, num dos comentários, uma “unção financeira especial”: “É hora de Deus acabar com a escravidão das dívidas e da pobreza no meio do seu povo!”, uma vez que “pobreza é escravidão”. Mas o Apóstolo Pedro diz: “Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição” (2 Pd 2:1).

Como alguém disse, por esta ordem de ideias podemos dizer que Jesus era escravo, pois “não tinha onde reclinar a cabeça” e os cristãos de Roma seriam igualmente escravos, pois viviam em catacumbas.


Sugere-se assim que, utilizando aquela edição da Bíblia e as suas orientações dadas nas notas e comentários, a pessoa alcançará vitória financeira, como que por magia. Mas nada de ensinar mordomia cristã, princípios bíblicos de gestão financeira ou uma vida de obediência e fidelidade a Deus.
Oferece-se assim este mundo e o outro em troca de 350,00 €, mas o facto é que a própria Bíblia ensina não ser Deus quem oferece o mundo em troca de adoração, mas sim o diabo (Mt 4:9).


Esta manipulação e estas negociatas com a Palavra são chocantes para quem ama e respeita a Bíblia e a reconhece como Revelação de Deus, porque configura um mercantilismo enganador e intolerável em qualquer líder cristão que se preze.


Estou convicto de que, se Jesus voltasse agora cá abaixo faria com estes “vendilhões do templo” o mesmo que fez com os outros, há dois mil anos, no átrio do Templo de Jerusalém. Corria com eles. Violentamente.


Fonte: Blog Ovelha Perdida

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