* Por DENIS LERRER ROSENFIELD
O cruel
atentado de Nice inseriu-se em uma série de atos violentos do mesmo tipo, não
sendo único nem exclusivo. Nova York, Orlando, Paris, Nice, Bruxelas, Tel-Aviv,
Jerusalém, Bangladesh e Bagdá são seriados de uma trama do terror que nos
coloca diante de um novo fenômeno. Ele não mais se enquadra nos modos habituais
de pensar a vida e a morte em sociedade.
Quando
do atentado às Torres Gêmeas do World Trade Center, várias questões foram
levantadas a propósito da eficiência de atuação dos órgãos de inteligência
americanos. De fato, não tinham conseguido prever este ato.
A
questão que se coloca, no entanto, é outra. Tinham eles as categorias de pensamento
para prever que os terroristas, despreocupados com a sua própria vida, iriam
arremessar dois aviões contra duas torres? Encontrava-se tal ato enquadrado em
algum tipo de manual? Como podiam prever o que não tinham pensamento para ver?
Terroristas
que desprezam a própria vida terminam por infringir uma condição que concerne à
própria condição humana, se seguirmos Hobbes, segundo o qual os homens buscam
antes de tudo conservar a própria vida e evitar a morte violenta. Ora, trata-se
de um princípio a orientar o pensamento. Se o princípio já não é mais aceito, o
pensamento que dele se segue perde o seu fundamento.
Terroristas
são indivíduos que obedecem a uma determinada concepção, que se orienta segundo
valores e princípios que rompem com toda uma tradição do pensamento ocidental,
de orientação greco-romana e judaico-cristã.
Quero
dizer com isto que a natureza dos seus atos não deve ser buscada em questões
psicológicas, como o ressentimento, ou sociais, embora possam se fazer
presentes. Aliás, os terroristas são geralmente de classe média, quando não de
classe alta, jogando por terra qualquer explicação social deste tipo.
O
terror possui uma natureza única, que diz, sobretudo, respeito ao modo de
encarar a morte violenta e a relação com o outro. Funda-se, neste sentido, em
outro valores e princípios, inicialmente de difícil compreensão para que os que
pensam e vivem segundo outras formas de vida e morte.
Na
ótica ocidental, por assim dizer, o terror é “irracional”, precisamente por
estar em rompimento explícito com nossa forma de racionalidade. Talvez, mais do
que isso, ele se caracterize por se situar além da própria razão. O desafio de
pensá-lo é tanto maior quanto mais distante se situa em relação às próprias
condições teóricas e práticas de exercício da razão.
O
que o terrorismo islâmico tem colocado em pauta é um completo desprezo para com
a vida, como se ela não tivesse valor nenhum, devendo ser absolutamente
desconsiderada. Algo, de certa maneira, desprezível. O terrorista se mata para
matar o maior número de pessoas, não importando que sejam crianças ou adultos,
jovens ou velhos, homens ou mulheres. O seu alvo não é militar, mas a própria
condição humana. O seu inimigo não é alguém fardado para a guerra ou a
segurança, mas um simples civil, símbolo da Humanidade.
O
instrumento utilizado deve simplesmente obedecer a esse objetivo maior. Não
importa como seja feito. Pode ser um avião, como em Nova York; fuzis e
metralhadores, como em Paris; bombas, como no Iraque; facas e machados, como em
Israel e na Alemanha; caminhão, como em Nice. São meras ilustrações dos meios,
conquanto o objetivo maior seja o que importa: a destruição do próximo, do
outro, qualquer um. O essencial é que a morte seja violenta.
Note-se
que todos esses atos obedecem a uma mesma concepção, que segue valores e
princípios próprios. Não são atos aleatórios nem casuais. Obedecem a todo um
plano que é executado das mais diferentes facetas. Seu único objetivo consiste
em que a destruição encontre a mais ampla repercussão possível, capaz de
mostrar que a morte violenta se aproxima para todos os que não seguirem a sua
própria concepção. O medo generalizado, para eles, é o seu mote central.
Em
certo sentido, pode-se dizer que seus atos são “lógicos”, embora sua lógica
seja vista como a da “irracionalidade”. São metódicos na execução, não se
afastando dos seus fins, apesar de suas formas de ação, por vezes, nos
desconcertarem. Pegue-se o caso dos ditos “lobos solitários”.
A
própria expressão “lobos solitários” já é completamente inadequada, por não
serem “solitários”. Sentem-se acompanhados em seus atos, em íntima conexão com
a concepção que os orienta. Foram, previamente, “educados” conforme os novos
valores e princípios. Não importa neste “novo” mundo se a educação foi
presencial ou virtual ou uma conjunção das duas. As redes sociais pertencem
também a este “novo” mundo. Seguem uma concepção e um plano.
Não
se deve compreender a “solidão” no sentido exclusivamente presencial. E, mesmo
aqui, quando a investigação policial é bem feita, contatos presenciais são
sempre encontrados, bem como os meios físicos dos ataques, dependendo das
necessidades escolhidas. O lobo é conectado! O terror age em rede, tendo ganho
uma dimensão global. Neste aspecto, configura uma novidade, a novidade de uma
nova forma de maldade.
Logo,
não convém buscar apenas “células terroristas” no sentido habitual do termo,
porque mesmo este termo encontra aqui suas limitações. A nova forma de
“congregação” pode simplesmente adotar novos modos, que prescindem da fórmula
tradicional da “célula”, vigente no século XX. A atenção da inteligência exige
uma nova forma de pensamento.
A
recente prisão de potenciais terroristas pelas autoridades brasileiras
obedeceu, neste sentido, a um novo padrão, primando pela inteligência e
cautela, ciente de que o modo de atuação destes grupos não se enquadra nas
formas habituais de ação.
Não
se trata de dizer que sejam amadores, embora talvez o sejam. Talvez também o
motorista de Nice possa ser dito “amador”. Se tivesse sido preso antes, a
barbárie não teria acontecido. A imprudência teria sido deixar os atos se
desenrolarem segundo a “lógica” do terror.
* DENIS LERRER ROSENFIELD Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Fonte: O Globo
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