CAIO BARRETTO BRISO
“Tem dias em que acordo deprimida, sem querer levantar (...) De vez em quando, me sinto um pouco melhor. Mas estou presa. Nunca mais serei feliz” Monica Correa Mãe de Cleiton “É a maior dor do mundo. Eu e meu filho trocávamos mensagens o dia inteiro. Ele me perguntava onde eu estava, se precisava de alguma coisa...” Adriana Pires da Silva Mãe de Carlos Eduardo
Uma rajada de tiros ecoa no Morro da Lagartixa. Monica se arrepia. A noite foi maldormida por causa dos disparos madrugada adentro. Lágrimas escorrem pelos olhos, já cansados de chorar, e molham o rosto sem rugas. É impossível não lembrar de Cleiton, o mais velho de cinco filhos, morto com 11 tiros de fuzil a poucos metros de casa. Oito meses depois da Chacina de Costa Barros, a dor imensurável golpeia sem dó o coração materno.
— Cada vez que escuto um tiro penso no que Cleiton sentiu quando entrou a primeira bala. Não consigo parar de pensar nisso. Nenhuma mãe suporta ver um arranhão em seu filho, imagine vê-lo transformado em picadinho. Meu filho foi enterrado nu, porque não era mais um corpo que pudesse ser vestido — desabafa Monica Correa, antes de outra rajada soar em Costa Barros.
A canção da guerra toca todos os dias no bairro da Zona Norte que virou sinônimo de violência. Para as mães dos cinco amigos que morreram juntos, em 28 de novembro do ano passado, tiros trazem recordações: do último beijo, do adeus que não houve, da poça de sangue sob o Palio branco no qual os jovens saíram para lanchar. Cento e onze tiros mataram Cleiton, Wilton, Carlos Eduardo, Wesley e Roberto. Ninguém sofre igual a quem pôs os meninos no mundo. Na semana passada, Joselita de Souza, mãe de Betinho, foi internada em São João de Meriti com pneumonia e anemia. Não queria mais se alimentar nem sair da cama, muito menos de casa. Segundo parentes, a mulher que, antes da chacina, vivia sorrindo, morreu de tristeza. Tinha 44 anos.
DA JANELA, A CENA DO CRIME
A morte de Joselita expôs o drama das mães da chacina, que ganhou repercussão internacional. Monica mora de favor na antiga sede da Associação de Moradores do Morro da Lagartixa. Divide um espaço de dois cômodos com o marido e os quatro filhos. Há oito dias eles não têm água em casa, e é preciso contar com a solidariedade de uma vizinha para tomar banho e matar a sede. A pequena residência tem apenas uma janela. Vê-se a linha do trem, a velha estação de Costa Barros, um muro repleto de citações bíblicas. Ao longe, o temido Complexo do Chapadão encobre o horizonte. Morando há oito meses no local, desde que houve a tragédia, ela evita a janela para não sofrer. Dela, é possível avistar o ponto exato em que os cinco amigos foram assassinados.
— Tem dias em que acordo deprimida, sem querer levantar. Em outros acordo revoltada, pensando em fazer justiça com as próprias mãos. De vez em quando me sinto um pouco melhor. Mas estou presa. Nunca mais serei feliz — afirma.
Nos primeiros meses após a tragédia, Monica recebia até cinco cestas básicas por dia. Como não precisava de tanta comida, dividia com amigos. ONGs ofereciam apoio e prometiam lutar por justiça ao lado das mães. Segundo ela, o próprio governador Luiz Fernando Pezão prometeu aos familiares das vítimas, em encontro no Palácio Guanabara, que o estado lhes daria todo o apoio necessário, inclusive pagamento de aluguel social para quem desejasse sair de Costa Barros. Com o passar do tempo, as promessas não se cumpriram, as ONGs se afastaram e até conhecidos da comunidade são capazes de condená-la pela tristeza que não termina.
— Quando ando com essa cara triste pelo morro escuto as piores coisas que uma mãe pode ouvir. Dizem que vai doer menos se eu me conformar, que não sou a única no mundo a ter perdido um filho, que eu quero ficar famosa. Já me falaram até que não tenho motivo para sofrer porque fiquei rica com a indenização do estado. O governo não nos deu dinheiro algum, e a verdade é que não quero um centavo. Só quero sair daqui — desabafa. — Preciso salvar meus outros filhos.
A depressão de Monica é tão grave que ela sequer conseguia trabalhar até esta semana. Na segunda-feira, deu um grande passo: fez faxina pela primeira vez desde a chacina, em uma casa na Barra. Sentiu-se perdida no Terminal Alvorada, onde milhares de pessoas esperavam ônibus, todas alheias à sua dor. O que a mantém viva são os quatro filhos e a certeza, cada vez mais frágil, de que a justiça será feita. Sentimento parecido com o de Adriana Pires da Silva, de 36 anos, mãe de Carlos Eduardo, o Dudu. Ele era seu filho mais velho. Tinha 16 anos, mas agia como homem. Quando a mãe saía para trabalhar, o menino fazia o jantar e cuidava da pequena Maria Eduarda, de 6 anos. De vez em quando, chamava-o de “pai”.
Adriana repete para si uma pergunta perturbadora: por que 111 tiros? Acredita que os quatro policiais acusados pelos disparos queriam explodir o carro para ocultar provas. O corpo de Dudu foi dilacerado — dez balas atravessaram suas costas e uma, a nuca. No poço sem fundo da depressão que a consumiu, tentou suicídio duas vezes. A primeira, na véspera do Natal; a segunda, pouco depois do réveillon. Seu advogado, João Tancredo, pediu ao Tribunal de Justiça que obrigasse o estado a custear atendimento psicológico para mãe e filha. Em primeira instância, o pedido foi negado — a juíza Cristiana Santos considerou que a solicitação só poderia ser atendida após a condenação dos PMs Antonio Carlos Gonçalves Filho, Thiago Resende Viana Barbosa, Marcio Darcy Alves dos Santos e Fabio Pizza Oliveira da Silva, presos em flagrante por homicídio doloso e fraude processual, mas beneficiados por um habeas corpus que lhes permitiu responder em liberdade.
MEDO DE SAIR DE CASA
Em segunda instância, a 5ª Câmara Cível autorizou o pagamento, com multa diária de R$ 100 ao estado em caso de descumprimento. Já se passaram seis semanas e, até agora, o estado nada fez. Adriana estaria desamparada não fosse o escritório de advocacia de Tancredo, que tem arcado com psicólogo e psiquiatra.
— Éa maior dor do mundo. Eu e meu filho trocávamos mensagens o dia inteiro. Ele me perguntava onde eu estava, se precisava de alguma coisa, dava notícias da irmãzinha, dizia para eu não me preocupar, que estava tudo bem — lembra Adriana. — Agora estou melhorando. Mas morro de medo de sair na rua, sinto crise de pânico. Tenho medo de policiais me matarem.
Márcia Ferreira Oliveira, mãe de Wilton, que herdou o Palio branco do pai, só consegue dormir à base de remédios. Seu filho estava terminando um curso técnico de administração e contabilidade, morreu um mês antes de pegar o diploma. Assim como as outras, ela não recebe qualquer atendimento do estado — o secretário de Assistência Social, Paulo Melo, não foi encontrado para responder por que as famílias estão tão desamparadas.
Mãe de Wesley, a cozinheira Rosileia de Andrade chora todos os dias.
— Às vezes, ela volta do trabalho chorando o caminho todo. Era o único filho. Só tinha ele — conta Rosiel Pereira, padrasto de Wilton.
No fim da entrevista de Monica, uma terceira rajada de tiros assusta os moradores do Morro da Lagartixa, onde os cinco amigos moravam. Seu filho de 9 anos sai do escuro do quarto. — Mãe, sonhei com tiros. Ela responde: — Não foi sonho, filho. Foi real.
Fonte: O GLOBO
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