domingo, 29 de novembro de 2015

A CHERNOBYL BRASILEIRA



POR ANA LÚCIA AZEVEDO

Distrito fantasma. Ruínas da Escola Municipal Bento Rodrigues, no distrito rural destruído pelo rompimento da barragem de Fundão, da empresa Samarco, em Mariana: da unidade escolar sobraram paredes das salas de aula com quadros.


 

Toda noite, Antônio Alves senta-se sob um manacá no mesmo banco da Praça Gomes Freire, em Mariana. Para sentir “o cheiro do pertencimento, buscar a vida que tinha”. O perfume das flores lembra a seu Antônio, de 69 anos, sua terra, varrida deste mundo. Ele era de Bento Rodrigues, o distrito rural de Mariana tragado pela tsunami de lama e rejeitos de minério de ferro, no último dia 5, no maior desastre ambiental da História do Brasil.

Os manacás e tudo mais no povoado do século XVIII se perderam sob o mar de lama. Bento, como chamavam os moradores, se tornou uma Chernobyl brasileira. Não há contaminação radioativa, como na cidade ucraniana. Não há mais nada. Só a onipresente lama, que condenou Bento Rodrigues à desolação.

As vozes por lá agora são as muitas vozes do vento. Ele assobia pelos destroços, faz um telhado quebrado chacoalhar estridente. Sacode uma copa de árvore pesada de lama num chiado seco. Bate portas. Rola pequenos objeto a esmo. Joga no chão fotos de família.

Nas poucas ruas reabertas pelas equipes de resgate perambulam alguns animais, deixados para trás pelos donos em fuga. Vez por outra, uma galinha solitária cisca nos destroços. Numa casa com lama até as janelas, três cachorros magros, um deles com os ossos a espetar a pele, rosnam e ainda montam guarda. Esperam por donos que não vão voltar. Se tiverem sorte, serão resgatados por voluntários. Duas marianinhas (pequenos papagaios) encontraram refúgio num telhado quebrado.

A vida tenta surgir em forma de brotinhos de capim. Mas basta uma chuva que a lama escorre e os leva embora. Não uma lama de barro comum, mas densa e viscosa. Passado quase um mês, ela ainda estala, incha e cheira forte à carniça e substâncias insondáveis. Engole animais. Ameaça equipes de resgate em piscinas de areia movediça.

As poucas casas ainda de pé, em ruínas e destelhadas, têm as janelas escancaradas para o vazio. No horizonte, no chão, nas paredes, na copa das árvores e nas encostas, tudo o que há é lama. Cinza e marrom, em muitos tons. O cinza vem dos restos do itabirito, a rocha que contém hematita, de onde se extrai o ferro. O marrom é da quantidade colossal de rocha estilhaçada em pedaços grandes como ônibus e pequenos como grão de areia.

Em Mariana, a 35 quilômetros do epicentro da tragédia, os sobreviventes de Bento não veem consolo. Seu Antônio teme pensar no futuro. Queria fugir do presente:

— Me sinto órfão da terra que não tenho mais. Na casa onde nasci e vivia com a minha família até a lama da Samarco destruir tudo, meu avô plantou os manacás que tento lembrar neste banquinho de praça. Não conheci meu avô, os manacás eram a única lembrança que ele me deixou. A Samarco e sua lama me tiraram tudo, até as lembranças.

Ele, a mulher, as duas filhas e o neto moram hoje num hotel no Centro de Mariana, onde o banheiro é coletivo e a cozinha, comunitária. Foi lá que a Samarco os alojou com outros desabrigados pela tsunami de rejeito de minério. Os quatro cachorros da família foram resgatados por voluntários e estão num abrigo. Um teve parte de uma pata amputada. A família Alves espera voltar a ter um lar. E teme que esse lar sejam as casas que seriam construídas para abrigá-los perto de um aterro sanitário.

— Tínhamos um quintal com pimenteiras, couve, alface. Cultivávamos um tomate-cereja lindo, que comíamos todos os dias. E querem colocar a gente para viver ao lado do lixo? Numa terra contaminada? Tiraram nosso vale lindo e nos jogarão num aterro sanitário? Não é justo — diz Paula Alves, de 36 anos, filha de Seu Antônio.

Paula ficou famosa por salvar heroicamente mais de 400 moradores do distrito, ao sair com sua moto, uma cinquentinha, desesperada, para avisar a todos que a onda vinha para os engolir. “A barragem rompeu, a barragem rompeu”, gritou pelas ruas. Ela própria perdeu tudo. Até o celular novo, comprado em cinco prestações, a primeira ainda por vencer.

— Tinha esperado uma promoção para comprar. Era um celular chique, desses que fazem selfie. Mas não tive tempo de pegar. Perdemos a geladeira nova também, só não perdemos as prestações — lamenta ela, que teme ficar sem emprego, pois a empresa que trabalha é uma terceirizada para reflorestamento da Samarco e corre o risco de não ter o contrato renovado.

Ela queria voltar a Bento. Mas ainda não conseguiu ter acesso ao local onde morava.

— Poucas famílias conseguiram pegar o que restou. Alegam que não há segurança. Mas temos esse direito. Deveriam nos oferecer segurança para isso. Éramos uma comunidade muito unida, feliz. Todo mundo se conhecia desde a infância. A gente dormia sem trancas — diz ela.

Paula e o pai se emocionam ao olhar fotos das ruas destruídas e desertas de Bento Rodrigues.

— Olha a casa da Elizângela, o telhado foi parar em outra rua — aponta ela para um amontoado de escombros. — Essa aqui era do seu Filomeno, mas ele morreu logo depois da tragédia, de ataque do coração. Morreu de tristeza.

IGREJA DO PADROEIRO FOI DESTRUÍDA

Pelas ruas desertas de Bento parecem vagar fantasmas. Não os dos mortos do antigo cemitério da Igreja de São Bento, arrastada pela tsunami, e que agora jazem num túmulo sob toneladas de rejeitos de minério. São as lembranças dos vivos, assombrados pelas perdas de parentes, amigos e da própria terra. A igreja do padroeiro, São Bento, se foi com a lama e seu sino badalou por centenas de metros até ser engolido.

O sino soa na memória de Cristiano Sales, de 33 anos. Vizinho dos Alves, se orgulhava de morar em Bento. No dia 5 se atrasou na volta do trabalho e chegou mais tarde em casa. Descia a encosta quando viu a tsunami destroçar o vilarejo.

— Não consigo esquecer. Achei que meus pais tinham morrido, mas por milagre escaparam com a roupa do corpo. Veio a onda escura e imensa e arrastou a igreja. E ela se foi sem que o sino parasse de badalar. Tocava, tocava à medida que a lama levava tudo. Até que a torre afundou e levou junto o sino. Mas não houve silêncio. Era um inferno. O rugido horroroso da onda, estalos violentos das árvores quebradas. E os gritos de desespero. Por toda a noite foi assim. Desespero — desabafa Cristiano.

Todas as noites ele se lembra daquela noite. Menos numa em que sonhou que a onda era só um pesadelo.

— Eu estava com amigos no Bar da Sandra, era muito popular. Estava todo mundo de Bento lá, como sempre. Eu perguntava sobre a onda e a Sandra dizia que não tinha onda nenhuma. Mas aí eu acordo.

No lugar que era dele e dos cerca de 600 moradores de Bento há um caos de destroços. Um pé de bota é a única coisa no meio da rua principal. Na escola, se foram as portas e as janelas. Mas os quadros continuam nas paredes. Da Igreja de São Bento ficaram as ruínas do portal, dois degraus e um pedaço da base do batistério.

Um dos oficiais bombeiros que trabalham em Bento Rodrigues embarga a voz ao olhar para caos de restos de roupas, documentos, fotos.

— Estou acostumado com resgates, em ver gente em sofrimento. Mas nunca imaginei nada dessa dimensão. É uma desolação tão grande que faz pensar no que importa mesmo na vida. Nas pessoas que amamos — afirma ele.

Ao lado, um motorista de uma empreiteira diz que evita ver fotos do distrito antes da tragédia.


— Isso aqui já é uma coisa pavorosa. Descobrir como era a vida aqui só vai me deixar mais triste. Fotos são exatamente o que Paula quer ver: — Queria dar uma última olhada onde ficava minha casa. Poder me despedir da minha terra. Cristiano teme que a tragédia seja esquecida. — Ainda há desaparecidos. Ninguém nos informa nada direito. Busco olhar para o futuro. Mas vejo apenas ela, a tragédia, a lama.



Fonte: O Globo

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