Culto a Stalin em territórios separatistas da Ucrânia ignora opressão do antigo governo
Por Renato Grandelle
O movimento separatista pró-Rússia em partes da Ucrânia ressuscitou uma das figuras mais controversas do século XX. O ditador soviético Josef Stalin é exaltado por autoridades de duas cidades rebeldes, que se autoproclamaram repúblicas e são opositoras do governo de Kiev. O rosto do ex-líder do Kremlin estampa cartazes no Centro de Donetsk (chamada Stalino até os anos 1960). Em Lugansk, também alinhada a Moscou, o órgão de segurança local foi batizado de MGB, a mesma sigla da polícia secreta stalinista. O tirano tornou-se símbolo de um passado glorioso a ser recuperado — a despeito dos conhecidos expurgos e execuções que inviabilizaram qualquer oposição a seu regime.
A trajetória stalinista também é revista em um livro lançado no mês passado pela historiadora Sheila Fitzpatrick, especialista em Rússia moderna. Em “On Stalin’s team” (em tradução livre, “No time de Stalin”), a pesquisadora sustenta que, em seus 31 anos no poder, o líder soviético não se manteve isolado no comando, uma teoria vista até hoje como senso comum. Seu gabinete seria composto por um punhado de homens de confiança, responsáveis por levar as ordens e os desmandos para o mundo comunista.
Segundo a historiadora, a divisão eficaz das tarefas entre as principais famílias do regime evitou arranhões do governo soviético mesmo em seus momentos mais críticos, como a invasão dos alemães no seu território durante a Segunda Guerra Mundial. A cúpula stalinista capitaneou o funcionamento das estruturas burocráticas e inspirou aparelhos de censura e violência. Outra realização significativa foi a instituição do culto à personalidade do ditador. Esta imagem de líder inabalável é hoje revigorada pelos rebeldes pró-Rússia, saudosistas do comunismo e da condição de potência mundial da União Soviética.
Professor do Departamento de História da USP, Angelo Segrillo ressalta que os novos adeptos de Stalin optam por vê-lo apenas por suas vitoriosas políticas econômicas, ignorando o estilo tirânico com que conduziu seu governo.
— Trata-se de um personagem fundamental para o desenvolvimento soviético, o protagonista de uma transformação revolucionária. Um grupo foi retirado à força do poder para ele assumir a liderança — descreve Segrillo, autor do livro “Os russos” (editora Contexto). — Por isso, há tantas interpretações sobre sua figura. Há quem prefira vê-lo como um assassino, enquanto outros o aplaudem pelas políticas que levaram o país da economia rural à fabricação de foguetes.
MOMENTO DE GLÓRIA
Para Virgílio Caixeta Arraes, professor do Departamento de História da UnB, a nova exaltação de Stalin é fruto de uma “memória seletiva”.
— A História tem uso seletivo. As pessoas só lembram do que satisfaz naquele determinado momento — avalia. — Os saudosistas do stalinismo acreditam que o comunismo foi o momento de afirmação política da Rússia no século XX. O país, quando era uma monarquia, perdeu a Primeira Guerra Mundial. Já como comunista, venceu a Segunda. Foi um momento de glória, em que provocou também o temor do Ocidente. E isso foi importante, porque sua população sempre sentiu que não era tratada com o devido respeito pelas potências europeias.
A Ucrânia, agora marcada pela divisão entre favoráveis e contrários ao governo russo, já foi praticamente unânime em sua ojeriza a Stalin. No início dos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha era considerada uma libertadora do país, descontente com as políticas soviéticas impostas pelo Kremlin.
O apogeu econômico da União Soviética foi alcançado após a morte de Stalin, mas ele manteve-se como a personificação da força comunista. Embora fosse ateu, o ditador recheava seu discurso com símbolos e imagens bíblicas. Anunciava à população a “terra prometida do socialismo”. Filho de servos, nascido em um casebre de um cômodo, tinha discurso acessível aos pobres, ao contrário do linguajar culto de seu maior rival no Partido Comunista, Leon Trotsky.
— O aparato propagandístico era típico dos regimes totalitários — conta Arraes. — Lenin, seu antecessor e primeiro líder comunista soviético, não gostava da exaltação das figuras políticas. Já Stalin considerava-se um czar, o pai da população, e se beneficiava de tecnologias como o rádio e o cinema para reforçar seu peso na sociedade.
Maurício Parada, professor do Departamento de História da PUC-Rio, destaca que Stalin representa a sobrevivência a uma grande guerra — no caso, o confronto contra Hitler — e a capacidade de extensão do território nacional.
— O que vale é a mão pesada, a ordem e a autoridade do Estado — enumera Parada, que também interpreta por que a minoria russa na Ucrânia ignora os expurgos promovidos por Stalin. — O esquecimento é tão importante quanto a memória. Vinte milhões de pessoas morreram durante o regime stalinista, houve expurgos, até generais foram levados do front para os campos de trabalho forçados. Mas isso não conta no processo de revisionismo. O importante é lembrá-lo como uma figura patriótica.
Este trabalho, segundo Parada, tem sido bem sucedido. Ainda que munidos com livros sobre a repressão stalinista, as gerações mais novas dos rebeldes ucranianos cerram fileiras ao lado do líder da União Soviética.
— Os jovens acreditam que ele é um grande herói, sequer consideram o que destruiu — lamenta. — Isso pode repercutir em biografias, livros didáticos, homenagens públicas e inaugurações de monumentos públicos.
De acordo com Segrillo, a postura dos jovens deve-se à desilusão com o progresso prometido nos últimos 20 anos, desde a queda do comunismo, mas não alcançado.
— Houve uma grande decepção nos anos 1990, porque a passagem do socialismo para o capitalismo não trouxe uma vida melhor — destaca ele. — Por isso, existe um apelo à grandeza de Stalin. Os líderes comunistas que vieram depois dele fizeram o regime perder vigor e se burocratizar. O atual conflito exacerbou o debate e abriu espaço para as questões radicais. No entanto, acredito que a imagem stalinista, mesmo forte neste momento, continuará minoritária. Pode ser um eterno contraponto ao regime que estiver em vigor, mas nunca terá a força de antes.
VIDA PESSOAL DO TIRANO
Até a personalidade do ditador tem sido revisitada. A romancista irlandesa Edna O’Brien, que lançou este mês o livro “The little red chairs” (ou “As pequenas cadeiras vermelhas”, em português), cogitou, em entrevista ao jornal britânico “Independent”, como era a vida pessoal do tirano soviético:
— Se quisesse, Stalin poderia ter um efeito magnético sobre as pessoas, chamar uma mulher para dançar, fazê-la se sentir feliz e, na mesma noite, ordenar algumas execuções. Mas eu gostaria de saber: ele sentia alguma coisa? Quando fazia sexo, pensava em assassinatos?
Fonte: O Globo edição de 31/10/2015