POR ANA LÚCIA AZEVEDO
Distrito
fantasma. Ruínas da Escola Municipal Bento Rodrigues, no distrito rural
destruído pelo rompimento da barragem de Fundão, da empresa Samarco, em
Mariana: da unidade escolar sobraram paredes das salas de aula com quadros.
Toda
noite, Antônio Alves senta-se sob um manacá no mesmo banco da Praça Gomes
Freire, em Mariana. Para sentir “o cheiro do pertencimento, buscar a vida que
tinha”. O perfume das flores lembra a seu Antônio, de 69 anos, sua terra,
varrida deste mundo. Ele era de Bento Rodrigues, o distrito rural de Mariana
tragado pela tsunami de lama e rejeitos de minério de ferro, no último dia 5,
no maior desastre ambiental da História do Brasil.
Os
manacás e tudo mais no povoado do século XVIII se perderam sob o mar de lama.
Bento, como chamavam os moradores, se tornou uma Chernobyl brasileira. Não há
contaminação radioativa, como na cidade ucraniana. Não há mais nada. Só a
onipresente lama, que condenou Bento Rodrigues à desolação.
As
vozes por lá agora são as muitas vozes do vento. Ele assobia pelos destroços,
faz um telhado quebrado chacoalhar estridente. Sacode uma copa de árvore pesada
de lama num chiado seco. Bate portas. Rola pequenos objeto a esmo. Joga no chão
fotos de família.
Nas
poucas ruas reabertas pelas equipes de resgate perambulam alguns animais,
deixados para trás pelos donos em fuga. Vez por outra, uma galinha solitária
cisca nos destroços. Numa casa com lama até as janelas, três cachorros magros,
um deles com os ossos a espetar a pele, rosnam e ainda montam guarda. Esperam
por donos que não vão voltar. Se tiverem sorte, serão resgatados por
voluntários. Duas marianinhas (pequenos papagaios) encontraram refúgio num
telhado quebrado.
A
vida tenta surgir em forma de brotinhos de capim. Mas basta uma chuva que a
lama escorre e os leva embora. Não uma lama de barro comum, mas densa e
viscosa. Passado quase um mês, ela ainda estala, incha e cheira forte à carniça
e substâncias insondáveis. Engole animais. Ameaça equipes de resgate em
piscinas de areia movediça.
As
poucas casas ainda de pé, em ruínas e destelhadas, têm as janelas escancaradas
para o vazio. No horizonte, no chão, nas paredes, na copa das árvores e nas
encostas, tudo o que há é lama. Cinza e marrom, em muitos tons. O cinza vem dos
restos do itabirito, a rocha que contém hematita, de onde se extrai o ferro. O
marrom é da quantidade colossal de rocha estilhaçada em pedaços grandes como
ônibus e pequenos como grão de areia.
Em
Mariana, a 35 quilômetros do epicentro da tragédia, os sobreviventes de Bento
não veem consolo. Seu Antônio teme pensar no futuro. Queria fugir do presente:
—
Me sinto órfão da terra que não tenho mais. Na casa onde nasci e vivia com a
minha família até a lama da Samarco destruir tudo, meu avô plantou os manacás
que tento lembrar neste banquinho de praça. Não conheci meu avô, os manacás
eram a única lembrança que ele me deixou. A Samarco e sua lama me tiraram tudo,
até as lembranças.
Ele,
a mulher, as duas filhas e o neto moram hoje num hotel no Centro de Mariana,
onde o banheiro é coletivo e a cozinha, comunitária. Foi lá que a Samarco os
alojou com outros desabrigados pela tsunami de rejeito de minério. Os quatro
cachorros da família foram resgatados por voluntários e estão num abrigo. Um
teve parte de uma pata amputada. A família Alves espera voltar a ter um lar. E
teme que esse lar sejam as casas que seriam construídas para abrigá-los perto
de um aterro sanitário.
—
Tínhamos um quintal com pimenteiras, couve, alface. Cultivávamos um
tomate-cereja lindo, que comíamos todos os dias. E querem colocar a gente para
viver ao lado do lixo? Numa terra contaminada? Tiraram nosso vale lindo e nos
jogarão num aterro sanitário? Não é justo — diz Paula Alves, de 36 anos, filha
de Seu Antônio.
Paula
ficou famosa por salvar heroicamente mais de 400 moradores do distrito, ao sair
com sua moto, uma cinquentinha, desesperada, para avisar a todos que a onda
vinha para os engolir. “A barragem rompeu, a barragem rompeu”, gritou pelas
ruas. Ela própria perdeu tudo. Até o celular novo, comprado em cinco
prestações, a primeira ainda por vencer.
—
Tinha esperado uma promoção para comprar. Era um celular chique, desses que
fazem selfie. Mas não tive tempo de pegar. Perdemos a geladeira nova também, só
não perdemos as prestações — lamenta ela, que teme ficar sem emprego, pois a
empresa que trabalha é uma terceirizada para reflorestamento da Samarco e corre
o risco de não ter o contrato renovado.
Ela
queria voltar a Bento. Mas ainda não conseguiu ter acesso ao local onde morava.
—
Poucas famílias conseguiram pegar o que restou. Alegam que não há segurança.
Mas temos esse direito. Deveriam nos oferecer segurança para isso. Éramos uma
comunidade muito unida, feliz. Todo mundo se conhecia desde a infância. A gente
dormia sem trancas — diz ela.
Paula
e o pai se emocionam ao olhar fotos das ruas destruídas e desertas de Bento
Rodrigues.
—
Olha a casa da Elizângela, o telhado foi parar em outra rua — aponta ela para
um amontoado de escombros. — Essa aqui era do seu Filomeno, mas ele morreu logo
depois da tragédia, de ataque do coração. Morreu de tristeza.
IGREJA
DO PADROEIRO FOI DESTRUÍDA
Pelas
ruas desertas de Bento parecem vagar fantasmas. Não os dos mortos do antigo
cemitério da Igreja de São Bento, arrastada pela tsunami, e que agora jazem num
túmulo sob toneladas de rejeitos de minério. São as lembranças dos vivos,
assombrados pelas perdas de parentes, amigos e da própria terra. A igreja do
padroeiro, São Bento, se foi com a lama e seu sino badalou por centenas de
metros até ser engolido.
O
sino soa na memória de Cristiano Sales, de 33 anos. Vizinho dos Alves, se
orgulhava de morar em Bento. No dia 5 se atrasou na volta do trabalho e chegou
mais tarde em casa. Descia a encosta quando viu a tsunami destroçar o vilarejo.
—
Não consigo esquecer. Achei que meus pais tinham morrido, mas por milagre
escaparam com a roupa do corpo. Veio a onda escura e imensa e arrastou a
igreja. E ela se foi sem que o sino parasse de badalar. Tocava, tocava à medida
que a lama levava tudo. Até que a torre afundou e levou junto o sino. Mas não
houve silêncio. Era um inferno. O rugido horroroso da onda, estalos violentos
das árvores quebradas. E os gritos de desespero. Por toda a noite foi assim.
Desespero — desabafa Cristiano.
Todas
as noites ele se lembra daquela noite. Menos numa em que sonhou que a onda era
só um pesadelo.
—
Eu estava com amigos no Bar da Sandra, era muito popular. Estava todo mundo de
Bento lá, como sempre. Eu perguntava sobre a onda e a Sandra dizia que não
tinha onda nenhuma. Mas aí eu acordo.
No
lugar que era dele e dos cerca de 600 moradores de Bento há um caos de
destroços. Um pé de bota é a única coisa no meio da rua principal. Na escola,
se foram as portas e as janelas. Mas os quadros continuam nas paredes. Da
Igreja de São Bento ficaram as ruínas do portal, dois degraus e um pedaço da
base do batistério.
Um
dos oficiais bombeiros que trabalham em Bento Rodrigues embarga a voz ao olhar
para caos de restos de roupas, documentos, fotos.
—
Estou acostumado com resgates, em ver gente em sofrimento. Mas nunca imaginei
nada dessa dimensão. É uma desolação tão grande que faz pensar no que importa
mesmo na vida. Nas pessoas que amamos — afirma ele.
Ao
lado, um motorista de uma empreiteira diz que evita ver fotos do distrito antes
da tragédia.
—
Isso aqui já é uma coisa pavorosa. Descobrir como era a vida aqui só vai me
deixar mais triste. Fotos são exatamente o que Paula quer ver: — Queria dar uma
última olhada onde ficava minha casa. Poder me despedir da minha terra.
Cristiano teme que a tragédia seja esquecida. — Ainda há desaparecidos. Ninguém
nos informa nada direito. Busco olhar para o futuro. Mas vejo apenas ela, a
tragédia, a lama.
Fonte: O Globo